sábado, outubro 15, 2005

03.10.2005 Eclipse anular do Sol em Ávila - Espanha

O seguinte relato do eclipse anular, decorrido a 3 de Outubro de 2005 e presenciado próximo de Ávila, foi escrito com toda a emoção e sentimento que nutro pela Astronomia.

Onze astrónomos valentes do grupo de Coimbra Proxima Centauri fizeram o périplo até essa cidade medieval para assistir a esse raro fenómeno. Foram eles: Ana Pratas, Dário Fonseca, Elísio Sousa, Elísio Sousa IV, Fernanda Pereira, Graça Polaco, João Lopes, João Poiares, Jorge Almeida, Paula Sousa, Rui Costa.


O relógio dava sinal do alarme: 6 horas e 30 minutos, hora local espanhola. Num ápice estava já no portão do palácio e eis a imponente catedral de Ávila a impor-se sob um céu totalmente nublado. A austera catedral contrastava com o suave tom do céu.

Mas algo de estranho se desenrolou. Nunca tinha presenciado um tom róseo como naquela madrugada. Parecia uma premonição de algo sublime. A fim de tentar acalmar a inquietude do espírito, deambulei pelos passeios graníticos da cidade património da Humanidade, sempre com o olhar nos céus róseos de Ávila. Os segundos passavam faustosamente devagar, a ansiedade não dava sinais de tréguas apesar das nuvens. Começou a clarear... às 8 horas e 30 minutos da manhã o céu ainda se apresentava nublado. Dirigíamo-nos nesta altura para o local que faria parte precisamente da linha central do eclipse.

Munidos do meu GPSr Garmin Etrex Legend inseri as coordenadas fornecidas pelas tabelas minuciosamente preparadas por Fred Espenak para o ponto seleccionado: 40º 52,60´ N 4º 37,5' W. Um ponto que recordarei para a eternidade. Uma hipérbole, mas nunca demais salientar o quão gravado ficaram registadas as fortes emoções sentidas neste dia. A duração do máximo do eclipse anular seria de 4 min 11,1 s para o local em questão. Desde o pátio do palácio onde se pernoitou até ao local eleito para observação do raro fenómeno foram percorridos 25,4 km precisamente na direcção Norte. À medida que nos aproximávamos, e nas palavras do grande Camões "já neste tempo o lúcido planeta... (o Sol)" [canto II de "Os Lusíadas"] surgia por entre as nuvens e, num instante, aquelas grandes massas líquidas suspensas na atmosfera foram dissipando lentamente. Ao longe vimos os vastos campos dourados a brilharem como uma espécie de aura ao reflectirem os raios fulminantes do "lúcido planeta". Foi então que chegámos ao local deleitando com o agora imenso céu do azul penetrante a beijar os planaltos dourados de Ávila. O grupo de Coimbra composto por 11 pessoas preparava-se então para o começo do eclipse. No local fomos presenteados com aquele aroma particular dos campos... Instalámo-nos a cerca de 170 metros a Norte do ponto preciso que passava mesmo pelo meio da faixa central. Registei as coordenadas geográficas que pouco diferiam da inicialmente prevista: 40º 52,692' N 4º 37,496' W. A altura do local marcada pelo GPSr foi anotada como sendo de 918 metros com margem de erro de 5 metros. Preparámos os mais diversos telescópios desde os dois PST Coronado, passando pelo SolarScope, o telescópio Celestron NexStar 5 com filtro Thousand Optical, e o telescópio Meade ETX 70 também com filtro solar, além das respectivas câmaras fotográficas... bem como os imprescindíveis óculos de protecção especial da Astronomie Magazine e da Ciel et Espace e houve quem trouxesse os que foram usados no trânsito de Vénus de 2004. O relógio já pesava o seu ponteiro para as 9 h 16 min...

A magnificência vinha a caminho. A agitação local era considerável. Tudo em dinamismo a fim de aproveitar cada momento precioso do evento. Até que... quando o bordo Oeste da Lua beliscou o Sol iniciámos um processo de experiência humana vívida e única. A partir desta altura até ao fim do eclipse... a temperatura decresceu dos 12,5 ºC para os 4,9 ºC o que foi bastante notório. Fez-se uso de uma simples estação meteorológica digital. Notou-se muito bem o decréscimo considerável da temperatura, mas não registei qualquer nota de vento de eclipse ao contrário do que alguns presentes relataram. Quase no final do eclipse surgiram umas rajadas bem fortes vindas de Este. Estava ocupado a apanhar a Micrommata sp. ... À medida que o eclipse decorria ia alternando entre a observação visual no PST, no Celestron, no SolarScope, nos óculos de protecção especial com a astrofotografia a cada uma das imagens proporcionadas pelos três instrumentos ópticos.

O primeiro contacto foi quase impossível de detectar, não nos apercebemos em que altura precisa teve lugar o dito. No entanto, registei com o cronómetro, acertado via GPS, que às 10 h 54 min 52 s locais (hora espanhola) o bordo Este da Lua [o que está mais próximo do Mare Crisium] contactava com o limbo do Sol, ou seja, ocorria o contacto II. Não tenho certeza, mas as contas de Baily não eram muito perceptíveis. O que me recordo de ter visto muito brevemente no contacto II no telescópio Celestron foram inúmeros pequenos pontos de luz, mas que rapidamente desapareceram. Algo de notório foi a ausência total de qualquer mancha solar. Nota curiosa relativamente ao Sol é que nalguns registos fotográficos, tirados sem filtro, notam-se bandas iridiscentes subtis.

O forte brilho do Sol impediu ver qualquer estrela a olho nu. Quanto aos planetas Júpiter e Mercúrio tentei ver, mas sem êxito, tapando o Sol com uma grossa placa de esferovite. Foi quando tentava procurar os planetas que vi algo de estranho. Não sei se seria mera impressão ou se realmente estaria a ver umas faixas de luz e sombra em torno do Sol a tremeluzir numa considerável mancha branca que notei durante e próximo do máximo do eclipse. Eram bastante pálidas e quase imperceptíveis.

A par do avanço do eclipse, todos os milhões de pessoas puderam testemunhar um considerável obscurecimento, na faixa central do eclipse. A luz ambiental criada pela passagem da Lua pelo Sol transformou os céus criando um breve período de luz fantasmagórica, os bordos das sombras difusos, a tonalidade do ambiente como se fosse quase cinzento, quando numa fase inicial o azul se tornava cada vez mais intenso. Obscureceu consideravelmente o que me fez lembrar certas noites mais brilhantes mas com uma luminosidade estranha - quase diria acizentada.

Estranhamente na altura do eclipse anular não vi nem uma única ave, no entanto, nesta altura alguém do grupo afirmava que tinha visto um pássaro a fugir em pânico.. estava a aproximar-se a anularidade, altura em que o Sol formava um belo anel conjuntamente com a Lua. O anel infernal a abarcar a estéril Lua que servia como que um escudo quase impotente perante o poderio celestial do Sol que com a sua luz vigorosa ainda dava um ar da sua graça!

E aqui convém fazer uma pequena divagação à boa maneira de Almeida Garrett... aqueles brevíssimos minutos da anularidade intensificaram-se de tal forma que o clímax aconteceu quando as minhas duas retinas captaram todos os fotões que trespassavam a ocular 12 mm inserida no PST Coronado e naqueles nanosegundos tive noção da verdadeira beleza do eclipse anular. Naquele terceiro contacto... o contacto que nos ensinou a todos uma grande lição: o Universo é único. Vi como que suspensas, colossais proeminências solares que se projectavam em linhas quase paralelas e ondulantes a partir do limbo do Sol que estava agora oculto pelo bordo Oeste da Lua. Neste momento, a euforia era imensa. As cordas vocais rapidamente intercederam para todos os amigos que largaram de imediato tudo para irem ver no meu PST o sentido do que realmente vale a pena num eclipse anular com o Sol a mostrar 10% da sua grandeza ofuscante. O poderoso Helios mostrou-se um pouco mais, contrariado pelo trânsito lunar que nos possibilitou aquela visão que é única e possível nestes eventos. Aquelas protuberâncias eram contudo apenas uma minúscula expressão da poderosa central maciça solar. As outras expressões apenas poderão ser apreciadas no eclipse solar total...

Haja poetas e escritores de renome mundial que mesmo assim seria muito difícil descrever não só o que se viu nesse terceiro contacto, mas também se sentiu naqueles brevíssimos segundos. Mesmo os melhores registos fotográficos que vi até agora não mostram aquilo que eu tive o prazer de observar nesse inesquecível contacto. A loucura apoderou-se mesmo de nós. Se um eclipse anular tem este efeito sobre nós... o que não terá um solar total?

O grupo ainda ficou para assistir ao "toque final" do satélite na estrela que banha de luz todo o Sistema Solar, e cuja luz chega inevitavelmente ao espaço das profundezas, além da Via Láctea... Esse contacto IV visto no PST Coronado (os valores não são válidos mas ficam aqui registados por mero interesse) ocorreu às 12 h 21 min 54 s.

Algo que se notou no final do eclipse foi a formação de alguma humidade. Além do mais, no final do eclipse, quando a temperatura passou dos 12ºC vi formigas Tapinoma erraticum e acabei por captar uma aranha juvenil Micrommata sp. que caminhava lá pelo feno.

É um espectáculo inolvidável presenciar um fenómeno que é o eclipse anular do Sol. Para quem não viu, não perca o eclipse anular por daqui a 23 anos na Península Ibérica.

Sinceramente, espero que gostem do relato que apenas só conseguiu transmitir um pouco aquilo que realmente foi visto e sentido. Só presenciando, só estando no local, só vivenciando a experiência é que terá todo o sentido em perceber o que é verdadeiramente um eclipse anular.


Para ver imagens e resumo do relato ir a:
http://www.astrosurf.com/ceu/eclipseanular3102005.html

JMA

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